Em Família

Este é um blog dedicado ao cinema. Uma vez abri uma exceção e tratei da novela A Favorita, João Emanuel Carneiro fazia sua primeira novela no horário nobre e mudava o paradigma da teledramaturgia ( acabou ao final caindo na dicotomia bem e mal, mas de forma brilhante), a cena da Patrícia Pilar com Mauro Mendonça é uma das cenas mais fantásticas feitas em novelas, terror puro.

Abro mais uma exceção agora, só desta vez para trazer um exemplo negativo. A tv Globo é capaz de trazer boas produções de obras seriadas, de teledramaturgia como o exemplo a cima e atualmente com a estéticamente belíssima Meu Pedacinho de Chão, entretanto é incapaz de ousar, dar voz a qualquer grupo social que não seja o padrão, médio. It’s all business, certo? Todavia, falamos de uma concessão pública, o que não faz isto tão certo assim.

Em 1996, a comediante Ellen Degeneres, sai do armário no último episódio de sua série homônima. Último episódio porque nunca na televisão norte-americana um personagem principal havia abertamente dito ser gay e a Disney não quis pagar para ver a reação dos telespectadores e patrocinadores do que poderia vir a seguir. São dezoito anos atrás. Quase duas décadas depois, personagens gays, lésbicas são comuns em séries, eles se relacionam como qualquer outro casal heterossexual ( o que inclui cenas de afeto e sexo) e Ellen…bem Ellen é a nova Oprah, seu talk show é o mais visto nos EUA e sua esposa, a atriz Portia de Rossi, aparece bastante por lá e a demonstração de afeto entre as duas é normal.

Em 1999, ou seja três anos após Ellen ter saído do armário lá nos EUA, estréia no Brasil a novela Torre de Babel. A novela de Silvio de Abreu poderia ficar marcada pela boa atuação de Adriana Esteves como a insuportável Sandrinha, a estréia de Cacá Carvalho em novelas como Jamanta, e o primeiro e único papel de vilão de Tony Ramos (modificado no meio da trama), mas não, o folhetim ficou marcado pela morte de duas personagens na explosão do shopping center ( ato central na trama). As personagens de Christiane Torlone e Silvia Pfeifer morrem por serem lésbicas e o público não as aceita. Uma violencia contra a comunidade LGBT. No produto nacional de maior visibilidade, aquele que entra nas casas das pessoas seis vezes por semana, a parcela LGBT da sociedade brasileira é extirpada de maneira brutal.

Em 2003, depois da enorme polêmica, um casal adolescente lésbico aparece na novela Mulheres Apaixonadas de Manoel Carlos. As personagens Clara e Rafaela caem nas graças do público e ganham torcida para um final feliz, longe das maldades da mãe de Clara que não aceita o namoro da filha. Como toda novela das oito ( ou nove) há cenas de sexo,sensuais, etc, ressalvas feitas apenas para as garotas. Não podendo colocar sequer uma cena de beijo entre as duas, o escritor é habilidoso em criar situações de intimidade, sugestivas, apesar do não beijo, existe um casal muito bem desenhado ali. Após “Maneco” é a vez de Aguinaldo da Silva colocar um casal de lésbicas em sua Senhora do Destino. Mais uma vez, nada de beijos, mas novamente situações de bastante intimidade, sugestivas e bem sensuais ( como a primeira noite das duas juntas, um plongée das duas na cama, abraçadas e semi nuas) e introduzindo o tema da adoção por casais homossexuais.

Uma década após estas novelas e consequentemente dezoito anos após Ellen, chegamos ao primeiro ( ok não é o primeiro de fato, o SBT já havia mostrado um beijo em sua novela, mas de grande audiencia pode ser considerado o primeiro) beijo gay na televisão brasileira aberta ( porque na fechada a MTV já tinha resolvido a questão no início dos anos 2000) com Matheus Solano e Thiago Fragoso. Penúltima cena da novela. A comemoração do beijo foi como a da conquista de campeonato, na região central de São Paulo se ouvia gritos de alegria nos prédios.

Quem sabe a dor de ser invisível, sabe a conquista que é a maior emissora do país, em seu programa de maior audiencia, finalmente reconhecer plenamente a existencia de uma parcela da população marginalizada e muitas vezes violentada ( e posso dizer por experiencia própria, pois já fui vítima da violencia homofóbica).

Após o beijo gay era de presumir que o tema poderia ser tratado de forma natural nos outros produtos da emissora certo? “Onde passa boi, passa boiada” e saindo o peso do primeiro, os próximos podem vir normalmente…quer dizer…

Em Família sucede Amor a Vida, novamente uma novela de Manoel Carlos tem um casal lésbico. É de se esperar que após seu casal teen tão querido e após a conquista na novela anterior, as coisas fluam fáceis, mas não. A novela que acaba em três semanas é uma sucessão de equívocos. As personagens Clara e Marina caíram no gosto das lésbicas que criaram até a hastag #clarina para tudo que se relaciona sobre as duas, mobilizam ferozmente as redes à favor das personagens e a Rede Globo de Televisão e Manoel Carlos as desrespeitam sempre. Depois de mais de 100 capítulos num “chove não molha” as duas personagens ficam juntas, se alguém perdeu alguns capítulos e não se deu conta que a personagem Clara se separou do marido, nem irá notar a diferença entre a relação das duas. Um exemplo claro foi a cena exibida ontem ( sábado, 21 de junho): as duas personagens conversam sobre relacionamento e estão afastadas,nem parece que estão no início do relacionamento, falta afeto, por fim Marina diz que não vai a um evento com Clara por ter coisas para fazer, Clara diz que vai embora e…dá um abraço em Marina! Atenção, elas já são um casal. Imagine a mesma cena, com um casal heterossexual, quais as chances de não haver nem que seja um selinho na despedida? Exato, inexistente. ( a cena é esta).

Causa expanto ver como ao invés de progredir no tratamento da comunidade LGBT, a tv Globo regride em uma década, se antes existia ao menos intimidade, sugestão de um relacionamento, agora é praticamente velado, não sabendo lidar com o beijo gay na novela anterior, a direção da tv prefere ignorar completamente as personagens, as tornar mais assexuadas ainda.

Manoel Carlos não as explodiu num shopping, mas do jeito que conduz a história, as implode na impossibilidade de contar uma história verdadeira. Mostrando que uma boa parcela da sociedade brasileira na última década encaretou ainda mais, se tornou ainda mais intolerante e a produção cultural de massa não sabe como lidar com esta parcela consumidora e com a parcela mobilizada pelas redes e de forte poder de opinião, absolutamente contrária a estas posições retrógradas. Colocar no final, na última cena da novela um beijo entre Clara e Marina não adiantará nada, reforçará apenas o papel que cabe à comunidade LGBT na televisão brasileira aberta: o resto, a xepa.

Oxalá temos o cinema nacional não é mesmo?!